A venda da Cimpor, de meia PT ou da Galp não é moda nem coincidência. Assim como o fecho de linhas de crédito a empresas que se está a intensificar de Norte a Sul não é a banca do avesso. Tudo isto é Portugal a pagar as suas dívidas.
Ao contrário do que é às vezes conveniente pensar, o mundo das empresas é o mesmo do do Orçamento.
Não há oposição entre uma 'economia real' e 'finanças públicas'.
Micro e macro economia são gémeos siameses, mesmo que cada cabeça queira ir para seu lado, o corpo arrasta ambas para o mesmo. Foi em grande parte por se pensar que 'vida' e 'défice' eram alternativas que aqui chegámos.
Uma moeda tem duas faces, não é possível valorizar uma sem a outra. Nem desvalorizar.
No texto que Cavaco Silva escreveu em 2003 traçando o desvario que se seguiria ao desequilíbrio externo já então pronunciado mas ignorado, e que o Negócios recuperou há semanas, o então professor de economia escrevia que chegaríamos à venda dos activos. Os dedos e os anéis. Era uma questão matemática, ou se quisermos, macroeconómica:
"Um país, mesmo que seja uma região num espaço monetário unificado, não pode endividar-se sem limites. No médio ou longo prazo, um défice continuado das contas externas acaba por manifestar-se sob a forma de aumento do prémio de risco, racionamento do crédito ou transferência de activos das mãos nacionais para as mãos de estrangeiros (…)."
Começou-se pelo imobiliário. Na última década e meia, Portugal vendeu terrenos do Alentejo a agricultores espanhóis, moradias no Algarve a turistas e reformados ingleses, prédios, avenidas novas e centros comerciais de Lisboa a fundos de "real estate" internacionais.
Venderam-se também empresas, dispersando-as em Bolsa, mas mantendo o seu controlo em Portugal. Agora, acelerou-se a venda de posições estratégicas das grandes empresas. E mais virá com as privatiza- ções, para as quais não há capacidade de aquisição pelos capitalistas portugueses.
O problema não é a entrega de empresas a controlo estrangeiro. Isso é até bom, na medida em que essas empresas se tornarem mais eficientes, oferecerem produtos e serviços melhores e mais baratos aos consumidores portugueses.
O problema é que a entrada de capitais que essas vendas significam não se reproduz. Porque o capital não se fixa, entra por um ouvido e sai pelo outro. Os accionistas estão endividados, recebem o dinheiro e pagam ao banco português, que por sua vez está endividado, recebe o dinheiro e paga ao credor estrangeiro.
Entra a 100 e sai a 200.
Veja-se o caso da PT.
Imaginemos que a venda da Vivo se faz pelos 6,5 mil milhões de euros, um valor enorme que ultrapassa toda a receita orçamentada pelo Estado para o seu acelerado programa de privatizações. O que acontece ao dinheiro?
Uma de duas coisas: ou é reinvestido, ou entregue aos accionistas como dividendo extraordinário. Provavelmente, as duas coisas acontecerão.
O investimento será, supõe-se, no estrangeiro. E o dinheiro entregue aos accionistas, para onde vai? 70% vai para accionistas estrangeiros (que assim recebem o retorno do seu investimento); o resto é pago a pequenos investidores e ao chamado "núcleo duro" português, que está quase todo ele endividado junto de bancos estrangeiros ou junto de bancos portugueses… que estão endividados junto de bancos estrangeiros. No final, dos 6,5 mil milhões, pouco capital ficará em Portugal.
O problema da venda das grandes empresas (a Galp a brasileiros e angolanos, a PT a espanhóis, o BPI e o BCP a angolanos, a Cimpor a brasileiros…) não é a nacionalidade dos accionistas.
É a impossibilidade de reter o seu capital. E quando são os próprios bancos que se afligem nesse constrangimento, não há volta dar: corta o crédito, paga aos credores.