Escrevo Pico e qualquer coisa me sacode. Um abalo; um garajau levantando voo da falésia hasteada no meu sangue; um milhafre planando e a conjugar seus pios altos; uma cagarra entornando seu grito de cio num ouvido oculto do corpo; ganhoas sobrevoando a fome por cima dos cardumes, nas águas do canal; um barco acostando-se ao cais, outro zarpando; São Jorge dando o roxo por não roxo, trajando-se de outras vestes comprometidas com novas cores… A Ilha do Pico ficou-me vazada nos olhos, vislumbram para além do que me cerca, não obstante a cortina invisível da realidade que ora me circunda em istmo, se obstine em tapar-me o sonho… Alcanço com nitidez de vidente os caminhos do mato, seus fetos gigantes, sua vegetação endémica, única, a paisagem por vezes lírica e sempre trágica… Nas narinas repousa-me ainda o persuasivo e afrodisíaco aroma da roca-da-velha, roca-de-vénus, e o de outras plantas e árvores e flores silvestres, cheiros mestiçados, lúbricos, endoidam a carne fraca do catecismo, o sangue e o desejo de apagar-me por completo, por instantes, para surgir rejuvenescido na plenitude do instinto, limpo e animal… As poças… Contemplo a pele e sinto escorrer-se-me a água diáfana do mar enigmático e raro, nem sempre bonacheirão, desde o berço me embalou, ora com voz cava de pai ora com a meiga de mãe (ele é feminino em certas línguas, e no Francês tem o mesmo som de mãe: la mer) ao longo das noites em que o sono e o sonho do antigo corpo adormeceram… Redescubro-me na Ilha que demando em nau de velas pandas. Hei-de arrecadá-la no silêncio avaro da casa dos botes: existe sempre uma redescoberta a empreender e uma viagem renovada à minha espera…
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
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2 comentários:
Magnífico, o texto de Cristóvão de Aguiar que o Paulo resolveu trazer para aqui. Que fica, mais, por dizer?...
fica que este escritor não pertence à colectânea de textos da Ilha do Pico...
outro crime de lesa cultura.
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