segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Escrevo do Pico

Escrevo Pico e qualquer coisa me sacode. Um abalo; um garajau levan­tando voo da falé­sia hasteada no meu sangue; um milhafre planando e a conjugar seus pios altos; uma cagarra entornando seu grito de cio num ouvido oculto do corpo; ganhoas sobrevoando a fome por cima dos cardumes, nas águas do canal; um barco acostando-se ao cais, outro zarpando; São Jorge dando o roxo por não roxo, trajando-se de outras vestes compro­metidas com novas cores… A Ilha do Pico ficou-me vazada nos olhos, vislum­bram para além do que me cerca, não obstante a cor­tina invisível da rea­lidade que ora me circunda em istmo, se obs­tine em tapar-me o sonho… Alcanço com nitidez de vidente os cami­nhos do mato, seus fetos gigan­tes, sua vegetação endémica, única, a paisa­gem por vezes lírica e sempre trágica… Nas narinas repousa-me ainda o persua­sivo e afro­di­síaco aroma da roca-da-velha, roca-de-vénus, e o de outras plantas e árvo­res e flores silvestres, cheiros mestiçados, lúbricos, endoi­dam a carne fraca do cate­cismo, o san­gue e o desejo de apagar-me por com­pleto, por instan­tes, para sur­gir rejuvenescido na plenitude do instinto, limpo e animal… As poças… Contemplo a pele e sinto escorrer-se-me a água diáfana do mar enigmático e raro, nem sem­pre bonacheirão, desde o berço me embalou, ora com voz cava de pai ora com a meiga de mãe (ele é feminino em certas lín­guas, e no Francês tem o mesmo som de mãe: la mer) ao longo das noites em que o sono e o sonho do antigo corpo adormeceram… Redescubro-me na Ilha que demando em nau de velas pandas. Hei-de arrecadá-la no silêncio avaro da casa dos botes: existe sem­pre uma redes­coberta a empreender e uma viagem renovada à minha espera…

2 comentários:

Manuel Ferreira disse...

Magnífico, o texto de Cristóvão de Aguiar que o Paulo resolveu trazer para aqui. Que fica, mais, por dizer?...

Anónimo disse...

fica que este escritor não pertence à colectânea de textos da Ilha do Pico...
outro crime de lesa cultura.