segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Bons exemplos (3)

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(...)
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Extraído de Ode Triunfal de Álvaro de Campos








Quem conhecia a antiga Fábrica da Baleia de Lajes do Pico e entra neste renovado espaço, não consegue escapar às recordações que a memória evoca, relativamente ao período da baleação.

Quando passo pela caldeira, não consigo evitar um arrepio perante o acidente fatal que vitimou um jovem trabalhador desta indústria.
Pois também se arriscava a vida em terra, na incessante demanda do pão nosso de todos os dias. Por isso, quando ouço alguns jovens bem nutridos e de mãos nos bolsos, saírem de um contexto histórico para associarem a caça à baleia, em décadas passadas, a uma monstruosidade, dá-me vontade de rir.
Continuo a visita e à medida que entro nas salas, fecho os olhos para apurar a memória do cheiro a óleo e a buana de baleia. Até consigo ouvir os estalidos secos dos cabos de aço e das rodas dentadas em movimento. Sobre a rampa deserta haverá sempre um trabalhador que gesticula, induzindo a máquina ao arrasto da baleia.
Contudo, ao abrir os olhos, a realidade fria toma forma e esboço um sorriso amargo. Afinal, os tic tacs não são das gigantescas roldanas, mas de uma numerosa excursão feminina que passeia os seus saltos elegantes num chão impecavelmente envernizado.

Quem diria que, passadas apenas duas décadas, os utilizadores deste recinto cobrissem os seus pés descalços com sapatos tão finos!
Quem diria que o odor intenso a cetáceos em putrefacção fosse substituído pelas últimas fragrâncias da Chanel ou da Dior!
As voltas que este mundo dá!...

13 comentários:

Anónimo disse...

Excelentes fotos. Não estou a reconhecer esta memória. Onde fica ?
JNAS

Carlos Faria disse...

Excelente post e uma indirecta homenagem aos homens da baleação

Paulo Pereira disse...

Ao JNAS, obrigado pela pergunta, pois fez-me corrigir o texto, de modo a dar uma informação mais completa.
Ao Geocrusoe e a todos, o meu obrigado pelo reforço.

JNAS disse...

Está irreconhecível ! Excelente restauro para quem era incapaz de reconhecer nas fotos a ruína que conheceu.
...
Adoro o Pico ; Depois de São Miguel é a Ilha que mais gosto (daquelas que conheço)...especialmente pela têmpera das gentes, pelo Mar inigualável e pela sua História de engenho e arte.
JNAS

Tibério Dinis disse...

Mais uma vez excelentes fotografias. O Basalto Negro está a ficar com um registo impressionante de memórias à baleação.

Haja Saúde

Domingos disse...

bom exemplo sim...
as fotos...
o texto...
o post...
e o picoense dono deste blog.
parabéns

Anónimo disse...

Meu caro Paulo Dionísio:
Sou um assiduo frequentador do teu Basalto Negro. Se sou assiduo não é para te fazer um favor, pois não precisarás dele para coisa nenhuma. É pela qualidade que lhe reconheço. Sem demagogias e sem graxa!
Desta vez, porém, foste (mais) feliz pela maneira como abordas e tratas o tema. Pela autenticidade e pela pureza, parabéns Paulo! E fizeste com que eu me emocionasse... Homem de Deus!!!

Juliana Couto disse...

Parabéns pelo post. Nada mais resta a dizer senão que concordo em tudo com o comentário de Artúr Xavier.

Anónimo disse...

Parabéns!
Bela homenagem aos heróis baleeiros, representantes dignos do querer e da luta do povo açoriano por melhores dias.
E o cheiro a perfume talvez não faça mal onde o fedor que acompanhava aquelas lides reinava.
Mais do que o odor que os visitantes deixam, o importante é a mensagem que levam, a demonstração cabal do esforço titânico de gerações abandonadas, por mais pão de milho na mesa.

Anónimo disse...

Paulo,
Ainda me lembro desse dia fatídico, quando o rebentamento da caldeira (a vapor?) da fábrica da baleia vitimou o Manuel (?)filho do Gil. A namorada ainda anda por aí. Manhã cedo, de um domingo, bateram à porta de meu pai (tinha uns biscates como agente de seguros) para participação do sinistro. Que tristeza, que imensa tristeza ainda hoje me assalta o coração ao me lembrar de um dos meus companheiros dos "bailes" da Filarmónica... Emocionado? Não triste porque já quase ninguém se lembrará dele...

Anónimo disse...

Voçês ainda se quixam! Em S. Miguel o património baleeiro foi todo negligenciado e pouco ou nada resta. Se mais pessoas do Pico conhecessem S. miguel teriam certamente outra postura. Estão de parabéns. Nós por cá estamos de luto.

Anónimo disse...

dionaCaro anónimo, da Ilha do Arcanjo:
Tem toda a razão, no que ao património baleeiro diz respeito. Nesse aspecto, não nos podemos queixar. Felizmente houve Gente no Executivo Regional, nas nossas Autarquias e Cidadãos que, de uma forma desinteressada mas com amor à sua Terra e ao seu Património, em boa hora, deitaram mãos à obra e souberam preservar algo de que nos podemos orgulhar e muito.
Havemos de nos queixar de outras coisas ou da falta delas e essas, para mal dos nossos pecados, são mais que muitas. É a vida, não é!?

JGAvila disse...

Não posso deixar de intervir para comentar o lamento do micaelense anónimo, que chora - e bem!- a perda da fábrica da baleia dos Poços em S. Vicente. Várias vezes, em escritos publicados e quando era jornalista da RTP-A, alertei, com imagens até, para a degradação e delapidação daquele património. Nunca vi qualquer reacção dos responsáveis micaelenses e de outras figuras gradas da Ilha. Olharam sempre para o lado, e nunca entraram lá para conhecer a queda de uma actividade que envolveu gente pobre da ilha de São Miguel. Alguns deles nem conhecem o bairro dos baleeiros, nas Capelas, feito pelo Eng. Cymbron para eles, nem as vigias e rampas, uma delas no Faial da Terra, onde se derretia baleias.
Arrisco mesmo que a Comissão do Património Baleeiro desconhece o que ainda resta. Para além desta indústria, há a do linho, cuja fábrica se degrada a olhos vistos, junto ao centro de inspecção de automóveis da Ribeirinha. Mas há mais património a degradar-se. Que se faça um inventário e logo se verá que a nossa história está a perder-se. E povo sem história é povo sem identidade.