sexta-feira, 12 de março de 2010

A banalização da mentira

Este é o tempo em que é possível chamar mentiroso ao primeiro-ministro sem que nada aconteça. Nem um processo, um protesto, uma declaração formal. Nada. Foi manchete aqui, neste jornal, e ficou tudo na mesma.

Este é o tempo em que é possível escrever em jornais que o procurador-geral da República mentiu a deputados, e a resposta fique por um vago esclarecimento. Mais uma vez não há processo, nem indignação pública.

Nos tempos que correm é possível chamar mentiroso a titulares de altos cargos do Estado e nada se passa. Das duas uma. Ou eles mentem mesmo e não deviam ocupar o lugar que ocupam. Ou não mentiram e quem o afirma devia prestar contas na Justiça.

A não ser que já ninguém dê nenhum valor à palavra. Nem os que faltam a ela, nem os que assistem indiferentes à banalização da mentira. Nos velhos tempos isto era resolvido à bengalada, ou em casos extremos, em duelos muitas vezes fatídicos. Mais recentemente a coisa resolvia-se em tribunal. No século XXI assobia-se para o ar.

Chamar mentiroso a alguém passou a ser uma coisa, como se diz agora, "gira". Diz-se "olha, fulano tal é mentiroso", com o mesmo sentido que se podia dizer: "olha, fulano de tal vai passar férias a Porto de Galinhas". É tão banal alguém mentir como ir apanhar sol ao Brasil.

Ficam assim legitimados todos os mentirosos. Os filhos que mentem aos pais, os maridos que mentem às mulheres, as mulheres que mentem aos maridos, os empregados que mentem aos patrões e os patrões que mentem aos empregados.

Como tudo isto é tão giro, em vez de uma bofetada o filho mentiroso leva uma carícia, o casal beija-se, e patrões e empregados abraçam-se. A mentira é um factor de união e concórdia, ao contrário do que acontecia no passado, no tenebroso tempo em que era considerada uma ofensa.

Vivemos um tempo estranho. No final do século XIX um filósofo alemão, Nietzsche, previu que no século XXI o mundo assistiria a um "total eclipse de todos os valores". A previsão teria hoje pouca importância se ele não tivesse antecipado as maiores catástrofes para o século XX, ao decretar, com a "morte" de Deus, o fim do sentimento de culpa.

O "total eclipse de todos os valores" é, em si mesmo, uma catástrofe. Se terá ou não outras consequências terríveis é o que se verá. Mas o passado mostra que há motivos para preocupação. A existência de valores, como a do sentimento de culpa, é aquilo que separa o homem da barbárie.

Se estamos, ou não, a assistir ao "total eclipse de todos os valores" é outra questão. A verdade é que, à nossa volta, estão a desabar muitos dos valores que são o cimento da sociedade. Emergem a ganância, a vaidade e a mentira. Não há punição. Os poderosos riem-se da justiça. O sentido de responsabilidade, como o sentimento de culpa, morreu.

Vivemos um tempo em que o Estado, que existe como emanação da sociedade, deixou de ser um padrão de comportamento ético e moral (se é que alguma vez o foi). A banalização da mentira, enquanto elemento da acção política, é um factor de desagregação social com consequências imprevisíveis. Uma coisa é certa: não nos ajuda nada a resolver os problemas do país.

Luis Marques
Texto publicado na edição do Expresso de 6 de Março de 2010

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