quarta-feira, 19 de maio de 2010

Os papa-reformas. S Sanches (1944-2010)

Fala-se muito, nos últimos tempos, em medidas para reduzir o défice. Medidas fiscais, diz-se até, de justiça fiscal.

O aumento do IVA é compreensível e mais justificado do que a redução populista nas cadeiras dos bebés ou nos ginásios, que os consumidores nunca sentiram no bolso.
Há pouco tempo foi a aprovação da tributação das mais-valias em IRS para acções detidas há mais de doze meses — medida justa, pois a não tributação era uma singularidade portuguesa. Para as acções alienadas antes da entrada em vigor da lei, a tributação é claramente retroactiva. Mas há na Constituição mais princípios do que o princípio muito tropical da não retroactividade da lei fiscal — e a possibilidade financeira de manter o Estado Social é apenas um deles.

Em qualquer caso, a justiça fiscal é uma questão que não se coloca só do lado da receita pública. Receita e despesa são o verso e o anverso do problema da justiça fiscal. É também muito provável que o esforço financeiro venha a atingir a segurança social, as pensões, as reformas.

Ora, de nada serve aumentar o IVA, ou tributar mais-valias, se o Estado continua a esbanjar recursos.

No esbanjadouro são muito claros dois tipos de papa-reformas:
as obras públicas desnecessárias e os papa-reformas em sentido próprio.

O Estado (o Governo, o primeiro-ministro) vive agrilhoado a um conjunto de compromissos políticos, arranjinhos, promessas, vassalagens, dívidas que paga periodicamente em quilómetros de auto-estradas, túneis e, agora, em TGV com paragens em todas as estações e apeadeiros do poder local (desenhado em cima do mapa da volta a Portugal em bicicleta).
Já todos sabemos que Portugal tem mais quilómetros de auto-estrada do que muitos países mais desenvolvidos, que não fazem sentido muitas dessas estradas e que é um absurdo havê-las sem custos.

O que é uma verdadeira esquizofrenia é que nada se faça neste momento de verdadeiro aperto das finanças públicas.
E o discurso da oposição, que defende a suspensão das grandes obras públicas, mais parece um salivar em vésperas de poder, um repto para que se guarde o melhor vinho para depois de eleições — e não uma verdadeira preocupação com as finanças, ou seja, com os contribuintes.

Além das vassalagens, não podemos esquecer os outros papa-reformas, profissionais da acumulação de reformas públicas, semipúblicas e semiprivadas.
Basta ver o caso do Banco de Portugal, ou outros menos imorais, que permitem que uma série de cidadãos — gente séria, acima de qualquer suspeita — se alimente vorazmente, em acumulações de pensões, reformas e complementos, que começam a receber em tenra idade.
Muitas vezes até com carreiras contributivas virtuais, sem trabalho e com promoções (dizem que para isto são muito boas a Emissora Nacional / RTP e a Carris).

Tudo isto, como sempre, é feito ao abrigo da lei. É que isso dos crimes contra a lei é para os sucateiros.
O problema é que a lei que dá é refém dos beneficiários.

In Expresso de 15 de Maio de 2010

2 comentários:

Jordão disse...

Deixa saudades.

Tomei a liberdade de usar esse texto no Candilhes, espero que não fique muito chateado.

Um abraço

Paulo Pereira disse...

jordão,
não perdia um artigo de S Sanches.
Esteja sempre à vontade para visitar o Basalto.

Um abraço